segunda-feira, 3 de maio de 2021

DEMÔNIO DE CATULÉ – O delírio de uma seita religiosa!

 

Gustavo Valente

 

A comunidade de Catulé

 

O caso do “Demônio de Catulé” foi uma tragédia acontecida em Catulé, na Semana Santa de 1955, no qual seguidores da Igreja Adventista da Promessa mataram quatro crianças acusadas de estarem possuídas pelo demônio. Tal acontecimento foi amplamente abordado nos jornais da época:

 

 “Sangrenta Manifestação de Fanatismo no Interior de Minas” - Folha da Manhã

 

“Cenas Dantescas no Interior de Minas: Fanáticos da Seita Adventistas da Promessa Sacrificaram Barbaramente Quatro Crianças” - Folha da Noite

 

 “4 crianças massacradas por fanáticos em Minas Gerais” - Correio Paulistano

 

 “Os Fanáticos de Malacacheta queimaram na fogueira, com cães e gatos, o corpo de uma das crianças massacradas” – Folha da Tarde

 

 “Inteiramente transformada a vida da pequena cidade de Malacacheta” – O Estado de São Paulo

 

“Judas humanos e animais queimados em Malacacheta – Mataram as crianças para castigar o demônio que estava encarnado em seu corpo” – Folha da Noite

 

O texto a seguir retrata um resumo de todos os acontecimentos que levaram a esse desfecho. O crime ocorreu em uma fazenda chamada São João da Mata (também conhecida como Fazenda Itatiaia), situada na zona rural a 21 km do município de Malacacheta - Minas Gerais. Na fazenda existia uma clareira conhecida como Catulé, onde cerca de 10 famílias fixaram moradia em 1952 e praticavam a agropecuária de subsistência e plantio de algodão. A maioria desses moradores mantinham vínculos de parentesco e amizade entre elas, enquanto alguns eram “externos”, vindos principalmente de Presidente Prudente - São Paulo.  Os habitantes de Catulé eram em sua maioria negros, analfabetos e sem base familiar. Metade deles haviam perdido o pai com menos de 10 anos de idade. Estima-se que a população era de 44 indivíduos.

 



 

A seita religiosa

 

Dois dos moradores de Catulé, conhecidos como Onofre do S. e Joaquim da C. eram seguidores da religião “Adventismo da Promessa” e começaram um trabalho missionário na região para converter os demais moradores da comunidade. Logo se tornaram líderes religiosos bastante influentes. Onofre era o único de Catulé que sabia ler e usava dessa habilidade para explorar textos bíblicos junto ao grupo. Joaquim por sua vez o ajudava na interpretação das passagens bíblicas.

 

O grupo religioso cada vez mais ganhava destaque na região. Então em outubro de 1954, dois pastores da Igreja Adventista da Promessa se reuniram com Joaquim e Onofre para orientar sobre as práticas religiosas realizadas em Catulé. Após essa visita, os dois pregadores foram qualificados pela igreja a realizar cerimônias de batismo das águas e a Santa Ceia. Em uma edição do jornal oficial da igreja “O Restaurador – Mensário Doutrinário Informativo”, existem relatos da visita dos pastores àquela região. No artigo os pastores destacaram a dificuldade de chegar até aquela afastada região e a alegria com a qual eles foram recebidos. De acordo com o jornal, o número de praticantes da religião em Catulé era de 40, sem contar as crianças. Após relatar detalhes do encontro e dos cultos feitos com o grupo, a matéria é finalizada com o anúncio de que a igreja seria representada naquele local pelo “irmão Onofre”, que seria responsável por construir uma casa de oração e coletar o dízimo dos praticantes. Depois disso, a igreja mandou um representante para se fixar naquele local, chamado Geraldo Justiniano. Assim ele poderia orientar e dirigir mais de perto todas as práticas realizadas pela igreja.

 

 

Doutrinas da seita

 

Os preceitos pregados por eles eram basicamente os mesmos estabelecidos por igrejas evangélicas: seguir os dez mandamentos, levar uma vida justa, proibição de fumar e beber, não participar de bailes ou festas, não cantar músicas profanas, viver honestamente e ter uma prática religiosa ativa (eles sempre se reuniam as quartas, sextas, sábados e domingos). Além disso, era vedado aos praticantes o consumo de carne de porco. Algo bastante marcante em Catulé era a severidade da moral sexual entre os membros.

 

Em dado momento, os praticantes decidiram que deveriam mudar seus nomes. Por exemplo, Onofre queria ser tradado como “Eucrides” e Joaquim escolheu “Elias” (posteriormente Joaquim disse que deveriam si dirigirem a ele como “Jesus”).

 

Por muito tempo o grupo seguiu sua prática religiosa e a vida trabalhadora e honesta. Mas esse ritmo seria quebrado quando a presença de Satanás no grupo foi revelada.

 

 

A revelação de um demônio

 

A harmonia da Catulé começou a ficar instável quando Onofre e Joaquim tiveram alguns problemas com seu vizinho, chamado Manuel. Apesar de participar da seita, Manuel não via com bons olhos Onofre e Joaquim tentavam regular seu comportamento e sua vida privada (como por exemplo, até mesmo ditar como ele deveria criar sua filha), uma vez que a diferença entre as idades deles eram bastante considerável: Onofre e Joaquim tinham 26 anos e Manuel 64. Manuel não estava aceitando bem o fato de outra pessoa “dar as cartas” em Catulé. Ele era uma espécie de líder local e o elo de ligação entre os moradores de Catulé com o dono da fazenda, antes da chegada de Onofre e Joaquim. Eles chegaram até mesmo a desentender por pedaços de terras em que cada um realizava seus cultivos. Em nome da religião, eles chegaram a fazer as pazes, mas sem que essas desculpas tenham nascido de uma vontade sincera.

 

Mas como o diabo surgiu na história? Depois desses acontecimentos, Manuel estava ajudando seu genro Geraldo no trabalho da roça, quando ele comentou sobre seu descontentamento contra os líderes da seita. Foi então que Geraldo, já com a mente deturpada pela doutrina religiosa imposta, começou acusar seu sogro de estar possuído por Satanás. Isso rapidamente se espalhou entre a comunidade e a relação entre ele e os líderes religiosos novamente estremeceu. Depois desses acontecimentos, Manuel se encontrou com Joaquim em um dos cultos e o pastor o tratou com certa violência física, ao sacudi-lo numa tentativa de tirar o demônio de seu corpo. Nenhum fiel interveio nesse comportamento, pois acreditavam que tudo aquilo era necessário para “expulsar Satanás”. O que começou como uma espécie de perseguição a Manuel foi cada vez mais tomando corpo de uma histeria coletiva.

 

 

A ascensão à Cidade Celeste de Canaã

 

Joaquim sempre pregava que o grupo deveria buscar uma ascensão à Cidade Celeste de Canaã como forma de atingir a graça máxima. Para isso, ele deveria eliminar todo tipo de impureza que pudesse haver em Catulé. Só assim eles seriam capazes de atingir tal objetivo. Com essa doutrinação em mente, os membros da comunidade começaram a ver vestígios de “Satanás” e de impureza em tudo, desde casas, vestimentas (o que posteriormente fez com que todos os membros vivessem nus em Catulé) e até mesmo em um pedaço de rapadura. Não demorou muito para que as impurezas também fossem vistas nos membros da comunidade, principalmente em mulheres e crianças.  No caso de crianças, essas eram vistas como alvos porque o batismo dos adventistas da Promessa era tardio, aos 16 anos, portanto eles seriam mais vulneráveis às possessões.

 

Em certa ocasião, Joaquim imaginou que Maria dos Anjos (uma menina órfã de 15 anos) estava com Satanás no corpo e começou a agredi-la. No meio da ação, um pintinho saiu debaixo da cama e isso for considerado a representação do demônio saindo do corpo dela. Maria dos Anjos foi um dos membros da comunidade mais perseguidos. Em certa ocasião, Joaquim chegou até mesmo a mordê-la. Com tantas agressões surgiram alguns ‘caroços’ no pescoço da garota, em virtude das lesões. Entretanto, isso também foi usado como justificativa de possessão demoníaca e ela apanhou ainda mais. Em uma posterior seção de agressão contra Maria dos Anjos, ela teria insinuado que Joaquim tinha abusado sexualmente dela, o que era algo totalmente proibido pela doutrinação religiosa pregada pelo próprio. O pastor não negou e justificou seu ato pela influência de Satanás. Talvez esse seja o principal motivo pelo qual Maria dos Anjos era um alvo frequente de Joaquim.

 

Além de Maria dos Anjos, outras meninas de Catulé também foram vítimas das agressões de Joaquim, como Josefina, Eva (acusada de estar possuída por um demônio que estava em um pedaço de rapadura) e Ataíde (acusa de possessão por estar acinzentada). As agressões não eram contestadas nem mesmo pelos familiares, que acreditavam que todas as atitudes de Joaquim se justificavam pelo fato de expulsar Satanás da comunidade.

 

Durante um culto, um fiel profetizou que o demônio tinha se apossado de um gato, e o grupo partiu em caça do animal. Durante a perseguição, o animal adentrou uma casa e derrubou uma lata de querosene. Isso fez com que uma menininha que morava nessa casa, Nelcina de 5 anos, acordar e se espreguiçar na cama. Ao ver aquilo, Joaquim começou a imaginar que Satanás estava começando a se apossar do corpo de Nelcina e as agressões voltaram-se todas para ela. De acordo com alguns relatos, João chegou a “pegar a menina pelos pés e bater com a cabeça dela no chão”. A tentativa de expurgar o demônio de Nelcina terminou com a morte da menina. Mas para Joaquim, o que tinha causado aquele trágico desfecho não foram suas agressões, mas sim o próprio demônio. Alguns animais que se aproximaram do corpo da garota (três cachorros e dois gatos) também foram mortos pelos fanáticos. O corpo de Nelcina foi queimado e todos voltaram para suas casas, como se nada tivesse acontecido.

 

O pai de Nelcina, Manuel M. (que não é o mesmo Manuel, ex-líder da comunidade), nunca se recuperou dessa perda e buscou confortar seus sentimentos na bebida. Ao vê-lo embriagado, Joaquim começou a agredi-lo, justificando que aquilo era influencia demoníaca e que era o culpado pela filha ter sido atormentada por Satanás. Ananias, o filho de um ano de Manuel M., também foi alvo das agressões.

 

Outra menina a sofrer agressões do grupo religioso foi Durvalina, de 7 anos. A pequena chegou até mesmo recitar trechos da Bíblia para mostrar que não estava possuída, mas todos disseram que aquilo era Satanás tentando enganá-los. Nesse ponto, não só Joaquim iniciava as agressões, mas é relatado que outros membros da seita, como Artuliana e Conceição, eram bastante fanáticos e também apontavam o dedo para acusar algum membro de possessão demoníaca. Artuliana chegou a agredir André, 4 anos, só cessando as agressões no momento em que uma folha de arvoredo caiu sobre o menino e ela afirmou que aquilo era uma mensagem de Deus que todos seriam salvos.

 

Após ser agredido, Manuel M. foi mantido preso por um tempo na casa de um membro chamado Zé de Lara para certificar que o demônio não estava mais nele. Depois que foi solto, Manuel M. fugiu de Catulé e foi até Malacacheta comunicar à polícia as atrocidades que estavam acontecendo. Entretanto, as autoridades não pareciam ter familiaridade ou confiança naquele relato, e essa queixa foi totalmente negligenciada. O dono da fazenda também foi comunicado de tudo que estava acontecendo, mas também ignorou a situação.

 

Depois disso, as agressões passaram a ser uma ferramenta não apenas para expurgar o demônio do corpo de algum fiel, mas sim para purificar o pecado dos membros da igreja. Para conseguir o perdão de Deus e, consequentemente conseguir ascender aos céus e à Cidade Celeste de Canaã, os fieis passaram por algumas seções de agressões como rituais recorrentes das reuniões.

 

Depois disso Joaquim começou a afirmar que ele era o próprio Jesus (e assim ele deveria ser chamado) e que sua saliva era milagrosa. A partir daí, a saliva dele era usada para tratar todas as moléstias que acometiam a comunidade, desde sensações de cansaços até picadas de insetos. Mesmo assim, as agressões não paravam. Em certa ocasião, Joaquim tirou uma criança do colo da mãe, chamada Maria, e a atirou violentamente contra o chão.

 

Além disso, Joaquim começou a ordenar que alguns bens pessoais (incluindo as casas e roupas) de alguns membros fossem queimadas para expulsar os demônios presentes nelas. Se não fosse o bastante, ele também estabeleceu que todos deveriam ficar nus sem sentir o menor pudor, uma vez que agora eles estavam no “Jardim do Éden”. Eles passaram a tomar banhos todos juntos como forma de purificar os pecados do grupo. A bíblia passou a ser mostrada para os animais, e àqueles que mostrassem o menor sinal de medo, eram mortos a pauladas.  

 

 

As agressões se agravam e resultam em mais morte

 

As agressões haviam se tornado uma coisa normal no grupo, mas a morte de Nelcina ainda era uma fatalidade. Mas a partir de certo ponto, a vida começou a ficar banalizada na comunidade. Enquanto jantava na casa de um fiel chamado Geraldo R., Joaquim ouviu Pedro, o filho do anfitrião, chorando. Joaquim afirmou que aquilo era um sintoma da possessão pelo diabo e ordenou que Geraldo R. pisasse em seu filho. Ele teve que repetir isso até seu filho morrer, só então Joaquim afirmou que o demônio havia saído dele.

 

Logo depois desse fato, Artuliana afirmou que o demônio não havia ido embora, mas sim entrado no corpo do filho de Maria (o mesmo que Joaquim tinha arremessado contra o chão anteriormente). O desfecho dessa criança também foi trágico: Joaquim a estrangulou até a morte.

 

Na sequência, Joaquim observou que outro filho de Geraldo R. estava com os olhos avermelhados (talvez chorando pela morte do irmão). Novamente Joaquim julgou aquilo como um sintoma da possessão por Satanás e matou o jovem a golpes de machado.

 

 

A polícia decide intervir

 

Por muito tempo a polícia negligenciou algumas acusações sobre a seita que chegavam até eles. Mas pela grande recorrência de reclamações dessas naturezas, alguns policiais decidiram ir até Catulé para verificar. Quando chegaram ao local, todos os membros da comunidade estavam se banhando juntos, nus e aparentemente apresentando um delírio coletivo. Ao ver a chegada dos policiais, todos começaram a se esconder, exceto Joaquim e Onofre, que foram de encontro aos guardas totalmente nus e mostrando agressividade. Os guardas dispararam contra eles e Onofre foi fatalmente ferido, enquanto Joaquim conseguiu sobreviver por ora apesar de ter sido alvejado. A esposa de Joaquim tentou tirar a arma dos policiais, mas eles a acertaram com o cabo da espingarda. Agonizando, Joaquim pediu para morrer com a palavra de Deus na boca. Então alguns membros da comunidade arrancaram páginas da bíblia e colocaram dentro da boca de Joaquim e também do cadáver de Onofre. Após engolir as páginas, finalmente Joaquim morreu.

 

Os guardas passaram a noite toda em Catulé. Na manhã seguinte chegaram reforços e todo o grupo foi guiado até a cadeia de Malacacheta.

 

Os residentes de Catulé foram presos e submetidos à análise psiquiátrica. De acordo com o promotor do caso “os crimes por eles praticados constituem indícios de anormalidade mental”. Em 17 de maio do 1955 o inquérito policial foi concluído. O policial Reinaldo P. S., autor dos disparos que vitimaram os líderes religiosos, foi absolvido pelos jurados, favoráveis à tese de legítima defesa. Os moradores de Catulé foram liberados por falta de provas, e a culpa caiu inteira sobre os falecidos Onofre e Joaquim. Um dos membros da seita, João B. C. ficou preso até 1970 no Manicômio Judiciário, pois no exame psiquiátrico foi constatado que ele tinha uma personalidade psicopata.

 

 

Dramaturgias

 

O massacre de Catulé foi adaptado para uma peça de teatro de Jorge Andrade, intitulada de “Vereda da Salvação” (1965). Esse roteiro também serviu como inspiração para uma versão cinematográfica de mesmo nome, produzida por Anselmo Duarte em 1965.

 



 Conclusão

 

Apesar de muitos culparem a doutrinação da igreja “Adventismo da Promessa” pelo incidente, é importante ressaltar um ponto. Essa igreja realmente admite a possibilidade de possessões demoníacas, entretanto nenhum ritual relacionado a exorcismos pregados pela crença envolvem as práticas agressivas observadas em Catulé.

 

Para detalhes adicionais e mais esmiuçados, sugiro que acessem o artigo “A aparição do demônio no Catulé” de Carlos Castaldi, no qual o autor aborda em mais de 50 páginas todo o contexto envolvido nesse caso.

 

 

Referências

A aparição do demônio no Catulé à https://cutt.ly/Af3LwHX  

Iconografia da História à https://cutt.ly/AgpPx1p

O demônio e o messias: notas sobre o surto sociorreligioso do Catulé à https://cutt.ly/Sgrt3cZ