Gustavo Valente
✞A
comunidade de Catulé✞
O caso do “Demônio de Catulé” foi
uma tragédia acontecida em Catulé, na Semana Santa de 1955, no qual seguidores
da Igreja Adventista da Promessa mataram quatro crianças acusadas de estarem
possuídas pelo demônio. Tal acontecimento foi amplamente abordado nos jornais
da época:
“Sangrenta Manifestação de Fanatismo no Interior de Minas” - Folha da Manhã
“Cenas Dantescas no Interior de Minas: Fanáticos da Seita Adventistas da Promessa Sacrificaram Barbaramente Quatro Crianças” - Folha da Noite
“4 crianças massacradas por fanáticos em Minas Gerais” - Correio Paulistano
“Os Fanáticos de Malacacheta queimaram na fogueira, com cães e gatos, o corpo de uma das crianças massacradas” – Folha da Tarde
“Inteiramente transformada a vida da pequena cidade de Malacacheta” – O Estado de São Paulo
“Judas humanos e animais queimados em Malacacheta – Mataram as crianças para castigar o demônio que estava encarnado em seu corpo” – Folha da Noite
O texto a seguir retrata um
resumo de todos os acontecimentos que levaram a esse desfecho. O crime ocorreu
em uma fazenda chamada São João da Mata (também conhecida como Fazenda
Itatiaia), situada na zona rural a 21 km do município de Malacacheta - Minas
Gerais. Na fazenda existia uma clareira conhecida como Catulé, onde cerca de 10
famílias fixaram moradia em 1952 e praticavam a agropecuária de subsistência e
plantio de algodão. A maioria desses moradores mantinham vínculos de parentesco
e amizade entre elas, enquanto alguns eram “externos”, vindos principalmente de
Presidente Prudente - São Paulo. Os
habitantes de Catulé eram em sua maioria negros, analfabetos e sem base
familiar. Metade deles haviam perdido o pai com menos de 10 anos de idade.
Estima-se que a população era de 44 indivíduos.
✞A
seita religiosa ✞
Dois dos moradores de Catulé,
conhecidos como Onofre do S. e Joaquim da C. eram seguidores da religião
“Adventismo da Promessa” e começaram um trabalho missionário na região para
converter os demais moradores da comunidade. Logo se tornaram líderes
religiosos bastante influentes. Onofre era o único de Catulé que sabia ler e
usava dessa habilidade para explorar textos bíblicos junto ao grupo. Joaquim
por sua vez o ajudava na interpretação das passagens bíblicas.
O grupo religioso cada vez mais
ganhava destaque na região. Então em outubro de 1954, dois pastores da Igreja
Adventista da Promessa se reuniram com Joaquim e Onofre para orientar sobre as
práticas religiosas realizadas em Catulé. Após essa visita, os dois pregadores
foram qualificados pela igreja a realizar cerimônias de batismo das águas e a
Santa Ceia. Em uma edição do jornal oficial da igreja “O Restaurador – Mensário
Doutrinário Informativo”, existem relatos da visita dos pastores àquela região.
No artigo os pastores destacaram a dificuldade de chegar até aquela afastada
região e a alegria com a qual eles foram recebidos. De acordo com o jornal, o
número de praticantes da religião em Catulé era de 40, sem contar as crianças.
Após relatar detalhes do encontro e dos cultos feitos com o grupo, a matéria é
finalizada com o anúncio de que a igreja seria representada naquele local pelo
“irmão Onofre”, que seria responsável por construir uma casa de oração e
coletar o dízimo dos praticantes. Depois disso, a igreja mandou um
representante para se fixar naquele local, chamado Geraldo Justiniano. Assim
ele poderia orientar e dirigir mais de perto todas as práticas realizadas pela
igreja.
✞Doutrinas
da seita✞
Os preceitos pregados por eles
eram basicamente os mesmos estabelecidos por igrejas evangélicas: seguir os dez
mandamentos, levar uma vida justa, proibição de fumar e beber, não participar
de bailes ou festas, não cantar músicas profanas, viver honestamente e ter uma
prática religiosa ativa (eles sempre se reuniam as quartas, sextas, sábados e
domingos). Além disso, era vedado aos praticantes o consumo de carne de porco.
Algo bastante marcante em Catulé era a severidade da moral sexual entre os
membros.
Em dado momento, os praticantes
decidiram que deveriam mudar seus nomes. Por exemplo, Onofre queria ser tradado
como “Eucrides” e Joaquim escolheu “Elias” (posteriormente Joaquim disse que
deveriam si dirigirem a ele como “Jesus”).
Por muito tempo o grupo seguiu
sua prática religiosa e a vida trabalhadora e honesta. Mas esse ritmo seria
quebrado quando a presença de Satanás no grupo foi revelada.
✞A
revelação de um demônio✞
A
harmonia da Catulé começou a ficar instável quando Onofre e Joaquim tiveram
alguns problemas com seu vizinho, chamado Manuel. Apesar de participar da
seita, Manuel não via com bons olhos Onofre e Joaquim tentavam regular seu
comportamento e sua vida privada (como por exemplo, até mesmo ditar como ele
deveria criar sua filha), uma vez que a diferença entre as idades deles eram
bastante considerável: Onofre e Joaquim tinham 26 anos e Manuel 64. Manuel não estava
aceitando bem o fato de outra pessoa “dar as cartas” em Catulé. Ele era uma
espécie de líder local e o elo de ligação entre os moradores de Catulé com o
dono da fazenda, antes da chegada de Onofre e Joaquim. Eles chegaram até mesmo
a desentender por pedaços de terras em que cada um realizava seus cultivos. Em
nome da religião, eles chegaram a fazer as pazes, mas sem que essas desculpas
tenham nascido de uma vontade sincera.
Mas
como o diabo surgiu na história? Depois desses acontecimentos, Manuel estava
ajudando seu genro Geraldo no trabalho da roça, quando ele comentou sobre seu
descontentamento contra os líderes da seita. Foi então que Geraldo, já com a
mente deturpada pela doutrina religiosa imposta, começou acusar seu sogro de
estar possuído por Satanás. Isso rapidamente se espalhou entre a comunidade e a
relação entre ele e os líderes religiosos novamente estremeceu. Depois desses
acontecimentos, Manuel se encontrou com Joaquim em um dos cultos e o pastor o
tratou com certa violência física, ao sacudi-lo numa tentativa de tirar o
demônio de seu corpo. Nenhum fiel interveio nesse comportamento, pois
acreditavam que tudo aquilo era necessário para “expulsar Satanás”. O que
começou como uma espécie de perseguição a Manuel foi cada vez mais tomando
corpo de uma histeria coletiva.
✞A
ascensão à Cidade Celeste de Canaã✞
Joaquim
sempre pregava que o grupo deveria buscar uma ascensão à Cidade Celeste de
Canaã como forma de atingir a graça máxima. Para isso, ele deveria eliminar
todo tipo de impureza que pudesse haver em Catulé. Só assim eles seriam capazes
de atingir tal objetivo. Com essa doutrinação em mente, os membros da
comunidade começaram a ver vestígios de “Satanás” e de impureza em tudo, desde
casas, vestimentas (o que posteriormente fez com que todos os membros vivessem
nus em Catulé) e até mesmo em um pedaço de rapadura. Não demorou muito para que
as impurezas também fossem vistas nos membros da comunidade, principalmente em mulheres
e crianças. No caso de crianças, essas eram
vistas como alvos porque o batismo dos adventistas da Promessa era tardio, aos
16 anos, portanto eles seriam mais vulneráveis às possessões.
Em
certa ocasião, Joaquim imaginou que Maria dos Anjos (uma menina órfã de 15 anos)
estava com Satanás no corpo e começou a agredi-la. No meio da ação, um pintinho
saiu debaixo da cama e isso for considerado a representação do demônio saindo
do corpo dela. Maria dos Anjos foi um dos membros da comunidade mais
perseguidos. Em certa ocasião, Joaquim chegou até mesmo a mordê-la. Com tantas
agressões surgiram alguns ‘caroços’ no pescoço da garota, em virtude das
lesões. Entretanto, isso também foi usado como justificativa de possessão
demoníaca e ela apanhou ainda mais. Em uma posterior seção de agressão contra
Maria dos Anjos, ela teria insinuado que Joaquim tinha abusado sexualmente
dela, o que era algo totalmente proibido pela doutrinação religiosa pregada
pelo próprio. O pastor não negou e justificou seu ato pela influência de
Satanás. Talvez esse seja o principal motivo pelo qual Maria dos Anjos era um
alvo frequente de Joaquim.
Além
de Maria dos Anjos, outras meninas de Catulé também foram vítimas das agressões
de Joaquim, como Josefina, Eva (acusada de estar possuída por um demônio que
estava em um pedaço de rapadura) e Ataíde (acusa de possessão por estar
acinzentada). As agressões não eram contestadas nem mesmo pelos familiares, que
acreditavam que todas as atitudes de Joaquim se justificavam pelo fato de
expulsar Satanás da comunidade.
Durante
um culto, um fiel profetizou que o demônio tinha se apossado de um gato, e o
grupo partiu em caça do animal. Durante a perseguição, o animal adentrou uma
casa e derrubou uma lata de querosene. Isso fez com que uma menininha que
morava nessa casa, Nelcina de 5 anos, acordar e se espreguiçar na cama. Ao ver
aquilo, Joaquim começou a imaginar que Satanás estava começando a se apossar do
corpo de Nelcina e as agressões voltaram-se todas para ela. De acordo com
alguns relatos, João chegou a “pegar a menina pelos pés e bater com a cabeça
dela no chão”. A tentativa de expurgar o demônio de Nelcina terminou com a
morte da menina. Mas para Joaquim, o que tinha causado aquele trágico desfecho
não foram suas agressões, mas sim o próprio demônio. Alguns animais que se
aproximaram do corpo da garota (três cachorros e dois gatos) também foram
mortos pelos fanáticos. O corpo de Nelcina foi queimado e todos voltaram para
suas casas, como se nada tivesse acontecido.
O
pai de Nelcina, Manuel M. (que não é o mesmo Manuel, ex-líder da comunidade),
nunca se recuperou dessa perda e buscou confortar seus sentimentos na bebida.
Ao vê-lo embriagado, Joaquim começou a agredi-lo, justificando que aquilo era
influencia demoníaca e que era o culpado pela filha ter sido atormentada por
Satanás. Ananias, o filho de um ano de Manuel M., também foi alvo das
agressões.
Outra
menina a sofrer agressões do grupo religioso foi Durvalina, de 7 anos. A
pequena chegou até mesmo recitar trechos da Bíblia para mostrar que não estava
possuída, mas todos disseram que aquilo era Satanás tentando enganá-los. Nesse
ponto, não só Joaquim iniciava as agressões, mas é relatado que outros membros
da seita, como Artuliana e Conceição, eram bastante fanáticos e também
apontavam o dedo para acusar algum membro de possessão demoníaca. Artuliana
chegou a agredir André, 4 anos, só cessando as agressões no momento em que uma
folha de arvoredo caiu sobre o menino e ela afirmou que aquilo era uma mensagem
de Deus que todos seriam salvos.
Após
ser agredido, Manuel M. foi mantido preso por um tempo na casa de um membro chamado
Zé de Lara para certificar que o demônio não estava mais nele. Depois que foi
solto, Manuel M. fugiu de Catulé e foi até Malacacheta comunicar à polícia as
atrocidades que estavam acontecendo. Entretanto, as autoridades não pareciam
ter familiaridade ou confiança naquele relato, e essa queixa foi totalmente
negligenciada. O dono da fazenda também foi comunicado de tudo que estava
acontecendo, mas também ignorou a situação.
Depois
disso, as agressões passaram a ser uma ferramenta não apenas para expurgar o
demônio do corpo de algum fiel, mas sim para purificar o pecado dos membros da
igreja. Para conseguir o perdão de Deus e, consequentemente conseguir ascender
aos céus e à Cidade Celeste de Canaã, os fieis passaram por algumas seções de
agressões como rituais recorrentes das reuniões.
Depois
disso Joaquim começou a afirmar que ele era o próprio Jesus (e assim ele
deveria ser chamado) e que sua saliva era milagrosa. A partir daí, a saliva
dele era usada para tratar todas as moléstias que acometiam a comunidade, desde
sensações de cansaços até picadas de insetos. Mesmo assim, as agressões não
paravam. Em certa ocasião, Joaquim tirou uma criança do colo da mãe, chamada
Maria, e a atirou violentamente contra o chão.
Além
disso, Joaquim começou a ordenar que alguns bens pessoais (incluindo as casas e
roupas) de alguns membros fossem queimadas para expulsar os demônios presentes
nelas. Se não fosse o bastante, ele também estabeleceu que todos deveriam ficar
nus sem sentir o menor pudor, uma vez que agora eles estavam no “Jardim do Éden”.
Eles passaram a tomar banhos todos juntos como forma de purificar os pecados do
grupo. A bíblia passou a ser mostrada para os animais, e àqueles que mostrassem
o menor sinal de medo, eram mortos a pauladas.
✞As
agressões se agravam e resultam em mais morte✞
As agressões haviam se tornado uma
coisa normal no grupo, mas a morte de Nelcina ainda era uma fatalidade. Mas a
partir de certo ponto, a vida começou a ficar banalizada na comunidade.
Enquanto jantava na casa de um fiel chamado Geraldo R., Joaquim ouviu Pedro, o
filho do anfitrião, chorando. Joaquim afirmou que aquilo era um sintoma da
possessão pelo diabo e ordenou que Geraldo R. pisasse em seu filho. Ele teve
que repetir isso até seu filho morrer, só então Joaquim afirmou que o demônio
havia saído dele.
Logo depois desse fato, Artuliana
afirmou que o demônio não havia ido embora, mas sim entrado no corpo do filho
de Maria (o mesmo que Joaquim tinha arremessado contra o chão anteriormente). O
desfecho dessa criança também foi trágico: Joaquim a estrangulou até a morte.
Na sequência, Joaquim observou
que outro filho de Geraldo R. estava com os olhos avermelhados (talvez chorando
pela morte do irmão). Novamente Joaquim julgou aquilo como um sintoma da
possessão por Satanás e matou o jovem a golpes de machado.
✞A
polícia decide intervir✞
Por muito tempo a polícia
negligenciou algumas acusações sobre a seita que chegavam até eles. Mas pela
grande recorrência de reclamações dessas naturezas, alguns policiais decidiram
ir até Catulé para verificar. Quando chegaram ao local, todos os membros da
comunidade estavam se banhando juntos, nus e aparentemente apresentando um
delírio coletivo. Ao ver a chegada dos policiais, todos começaram a se
esconder, exceto Joaquim e Onofre, que foram de encontro aos guardas totalmente
nus e mostrando agressividade. Os guardas dispararam contra eles e Onofre foi
fatalmente ferido, enquanto Joaquim conseguiu sobreviver por ora apesar de ter
sido alvejado. A esposa de Joaquim tentou tirar a arma dos policiais, mas eles
a acertaram com o cabo da espingarda. Agonizando, Joaquim pediu para morrer com
a palavra de Deus na boca. Então alguns membros da comunidade arrancaram
páginas da bíblia e colocaram dentro da boca de Joaquim e também do cadáver de
Onofre. Após engolir as páginas, finalmente Joaquim morreu.
Os guardas passaram a noite toda
em Catulé. Na manhã seguinte chegaram reforços e todo o grupo foi guiado até a
cadeia de Malacacheta.
Os residentes de Catulé foram
presos e submetidos à análise psiquiátrica. De acordo com o promotor do caso “os
crimes por eles praticados constituem indícios de anormalidade mental”. Em 17
de maio do 1955 o inquérito policial foi concluído. O policial Reinaldo P. S.,
autor dos disparos que vitimaram os líderes religiosos, foi absolvido pelos
jurados, favoráveis à tese de legítima defesa. Os moradores de Catulé foram
liberados por falta de provas, e a culpa caiu inteira sobre os falecidos Onofre
e Joaquim. Um dos membros da seita, João B. C. ficou preso até 1970 no Manicômio
Judiciário, pois no exame psiquiátrico foi constatado que ele tinha uma
personalidade psicopata.
✞Dramaturgias✞
O massacre de Catulé foi adaptado
para uma peça de teatro de Jorge Andrade, intitulada de “Vereda da Salvação”
(1965). Esse roteiro também serviu como inspiração para uma versão
cinematográfica de mesmo nome, produzida por Anselmo Duarte em 1965.
Apesar de muitos culparem a
doutrinação da igreja “Adventismo da Promessa” pelo incidente, é importante
ressaltar um ponto. Essa igreja realmente admite a possibilidade de possessões
demoníacas, entretanto nenhum ritual relacionado a exorcismos pregados pela
crença envolvem as práticas agressivas observadas em Catulé.
Para detalhes adicionais e mais
esmiuçados, sugiro que acessem o artigo “A aparição do demônio no Catulé”
de Carlos Castaldi, no qual o autor aborda em mais de 50 páginas todo o
contexto envolvido nesse caso.
✞Referências✞
A aparição do demônio no Catulé à https://cutt.ly/Af3LwHX
Iconografia da História à https://cutt.ly/AgpPx1p
O demônio e o messias: notas
sobre o surto sociorreligioso do Catulé à https://cutt.ly/Sgrt3cZ
Nenhum comentário:
Postar um comentário