Gustavo Valente
✞ Origem e características ✞
O boitatá também é conhecido
pelos nomes de mboitatá, baitatá ou batata (região Sul), biatatá (Bahia), bitatá,
bata (São Paulo e Minas Gerais) e batatão (região Norte e Nordeste). Trata-se
de um personagem do folclore brasileiro, descrito como uma grande serpente de
fogo que protege as matas e campinas contra pessoas intencionadas a queimá-las.
Tal lenda tem origem indígena,
assim como seu nome. Do tupi-guarani, boitatá vem de cobra (boi) e fogo (tata).
O folclorista brasileiro Couto Magalhães destacou em sua obra “O Selvagem”
(1876) que “como a palavra o diz, boitatá é cobra-de-fogo”. O primeiro registro
histórico acerca da lenda encontra-se numa carta do padre jesuíta José de
Anchieta, escrita em 31 de maio de 1560, no qual ele cita algumas lendas
relatadas pelos indígenas: "Há também outros (fantasmas), máxime nas
praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios, e são
chamados ‘baetatá’, que quer dizer cousa de fogo, o que é o mesmo como se se
dissesse o que é todo de fogo. Não se vê outra cousa senão um facho cintilante
correndo para ali; acomete rapidamente os índios e mata-os, como os curupiras;
o que seja isto, ainda não se sabe com certeza”.
Na obra “Lendas do Sul” de 1913,
escrita por João Simões Lopes Neto, é descrita algumas características físicas
dessa criatura. O boitatá se apresenta como uma grande serpente que emana fogo,
concentrado principalmente em sua cabeça. Em meio a essa chama, é possível ver
diversos olhos. Segundo a lenda, o boitatá era uma boiguaçu (sucuri) que permaneceu
adormecendo em um tronco dentro de uma caverna durante o grande dilúvio de 40
dias retratado no Antigo Testamento da Bíblia (o mesmo dilúvio da conhecida
estória da Arca de Noé!). A enchente decorrente da chuva foi fatal para a
maioria todos os animais da floresta, exceto essa sucuri. Quando despertou,
estava faminta e resolveu caçar. Ao ver os animais mortos, a sucuri decidiu comer
apenas seus olhos, já que eles permaneciam brilhando devido aos resquícios da
última vez que o sol raiou. Na medida em que os predava, a cobra começou a
ficar paradoxalmente transparente e intensamente luminosa, até se tornar uma
cobra de fogo com diversos olhos. Como forma de pagar pelo pecado da gula, ele
se tornou uma alma penada que vaga pelas florestas, protegendo-as contra a
devastação e queimadas.
Da mesma forma, outras vertentes
históricas da lenda também atribui a origem do boitatá ao grande dilúvio
bíblico. Entretanto, tais relatos apontam que outros animais também foram
capazes de sobreviverem à tempestade. A sucuri ao despertar deu seu sono tinha
a vantagem de enxergar muito bem na escuridão, fato que conferiu uma facilidade
em predar os demais animais sobreviventes. Com a grande oferta de alimento, ela
decidiu comer apenas as partes que julgava mais apetitosas: os olhos. De tanto
comê-los, a sucuri foi adquirindo a luminosidade de tais estruturas. Quando
essa serpente morreu, sua alma foi amaldiçoada, pelo pecado da gula, a vagar
pelas matas, como uma serpente toda iluminada.
Existe também uma variação da
lenda em Santa Catarina, relatada no livro “Terra Catarinense” por Crispim
Mira, em 1920. Nessa, o boitatá não é retratado como uma cobra, mas sim como um
touro feroz que disparava chamas pela boca. Além disso, ele tem "pata como
a dos gigantes” e “um enorme olho bem no meio da testa”, como um ciclope. Essa
criatura já foi visualizada nas praias de Santa Catarina e até mesmo voando por
cima de árvores em matas desse estado. Muitos acreditam que esse boi seja a
alma de indivíduos que em vida tinham relações incestuosas com suas comadres.
Para afugentá-lo ou captura-lo, diz-se que é necessário amarrá-lo com cordas de
sino de igreja.
No estado do Paraná temos ainda
uma quarta versão da lenda: nessa, o boitatá também é fruto da relação entre
compadre e comadre, e sua forma física não é de uma serpente ou bovino, mas sim
de esferas de chamas. Tais esferas normalmente não fazem mal para os que se
deparam com elas, e estão condenadas a vagarem eternamente nas noites, entre os
galhos das árvores de florestas. Por causa dessa outra vertente de origem do
boitatá, em alguns lugares ele também é conhecido como “alma dos compadres e
das comadres”.
A lenda do boitatá também está
presente em algumas regiões do Paraguai e Argentina. Apesar de ter uma origem
diferente, a lenda aborda aspectos já retratados nos boitatás brasileiros, como
a figura da serpente de fogo e a relação incestuosa entre compadre e comadre.
Nessa lenda os indivíduos que cometeram tal transgressão, ao adormecer se
transformam em víbora (ou pássaro) com a cabeça em chamas. Em seguida, essas
serpentes procuraram uma à outra até se encontrarem e se devorarem mutuamente.
Podemos perceber que de acordo com
a região, o boitatá pode ter diferentes origens. Tais relatos ora apresentam
muito pontos em comuns, mas ora apresentam muitos aspectos conflitantes. Esse
pode ser o resultado de uma história ser passada de geração a geração a partir
de relatos orais, sem que um registro escrito definitivo fosse feito. Dessa
forma, as diferenças culturais entre cada região podem determinar mudanças
consideráveis na estória, sendo mal percebidas uma vez que ocorreram de forma
gradativa ao longo do tempo.
✞ Poderes
✞
Geralmente o boitatá habita as
águas de rios ou lagoas. A maior parte dos avistamento dessas criaturas ocorre
na margem de algum leito d’água. De acordo com a lenda, o fogo emanado por ele
é mágico, por isso não provoca incêndios nas florestas e nem se apaga quando se
submerge na água. Mas quando alguém entra em sua mata com más intenções,
principalmente visando iniciar uma queimada, o boitatá entra em ação. Uma das
estratégias utilizadas por essa criatura é a capacidade de se transformar em um
tronco em brasas, denominado “méuan”. Quando o malfeitor eventualmente encosta
nesse tronco, ele imediatamente entra em combustão, queimando-o em
contrapartida. Acredita-se também que quando a pessoa direciona seu olhar
diretamente para algum dos vários olhos do boitatá, esta imediatamente se torna
cega e louca. Sugere-se ainda que o melhor a ser feito ao se deparar com um
boitatá é permanecer parado, com a respiração presa e de olhos bem fechados até
ele ir embora. Tentar fugir dele pode não ser uma boa ideia, uma vez tal
atitude pode ser o gatilho para que o boitatá inicie um ataque.
✞ Relatos de testemunhas ✞
Existe um levantamento elaborado
por Vanderci de Andrade Aguilera, intitulado como “O baetatá existe
realmente?”, no qual um questionário foi aplicado aos moradores de regiões
rurais do estado do Paraná, acerca de suas experiências com o boitatá. Dos 130
participantes, 27 (21%) afirmaram ter visto o boitatá pessoalmente, enquanto 25
indivíduos (19%) relataram alguma narrativa ouvida dos ancestrais ou vivenciada
por eles. Por outro lado, 34 pessoas (26%) afirmaram não saber do que se
tratava o boitatá, embora já tivessem ouvido algo a respeito disso, enquanto 44
pessoas (34%) nunca tinham ouvido nada a relacionado a essa lenda.
O estudo de Aguilera também é rico
na descrição de alguns relatos de testemunhas oculares do boitatá. Abaixo
coloco algumas dessas narrações. Sugiro que acessem o texto na íntegra para terem
acesso aos 16 relatos sobre a criatura colhidos nesse levantamento (o link do
artigo “O baetatá existe realmente?” se encontra ao final deste texto).
Relato nº 1: “Ah! meu pai que
falava do baitatá. Meu pai falava que um dia ele foi caçar no rio, daí ele
chegou lá no rio e diz que começou aquele barulho e aquele fogo. Daí ele disse
assim que era o baitatá, ele disse que o baitatá era parte do coisa ruim, né, e
estava assustando ele. Daí ele pegou e foi e voltou pra trás por que já era
três vezes que ele tinha ido pra lá, e três vezes que ele passava por ali e o
baitatá estava atentando ele e era o coisa ruim”.
Relato nº 2: “Ah! Sim, nós vimos
uma vez, nós estávamos sentados na área de casa quando chegando daí de
noitezinha tinha um fogo na roça do vizinho e desceu aquela fita de fogo
naquele um e daí daquele extraviou tudo, de repente subiu um com o outro pra
cima daí desceu e se pecharam daí ficaram em dois, daí um ia sozinho, de
repente os dois subiram em cima duma serra e sumiram, nós vimos uma única vez,
mas aí contaram que era o tal do baitatá”
Relato nº 3: “Volta e meia aí num
lugar eu noto aí que dava (o baitatá), eles falavam que tinham visto o baitatá
e coisa e eu ficava ‘escuitano’ assim, mas eu mesmo enxergar nunca enxerguei”
Relato nº 12: “Já (vi). Fica nas
árvores assim. Diz que se não mexer com ele, diz que ele não mexe com a gente,
só quem assobia, daí ele...daí ele vem, e queima. [E a senhora já viu muito?]
Já, eu vi bastante já. [Onde?] Ih, assim nos matos, sempre dá, a gente enxerga
de longe aquela tocha de fogo, (...) Se assobiar eles vêm, que vêm loucos na
gente”
✞ Criador de boitatás? ✞
Visando fomentar a importância
cultural da lenda ou apenas fazer uma brincadeira, na internet há o relato de
Tiago Scaramella que afirma criar tais criaturas em São José do Timbózinho -
SC. Segundo o próprio, é possível pegar o filhote em mãos, já que ele não é
agressivo e nem muito quente. Tal criação exige um amplo espaço físico, uma vez
que eles tendem a se afastar quando algum desconhecido se aproxima. No inverno,
os boitatás tendem a buscar proteção contra um frio embaixo de folhas de fumo.
Scaramella afirmou também que certa vez um amigo levou um casal de boitatá para
o Acre, visando afugentar o mapinguari (outra criatura do folclore brasileiro
que vive na floresta amazônica) de sua propriedade.
✞ Explicações racionais – o fogo-fátuo ✞
Existem muitas testemunhas, como
indígenas e aventureiros que adentram florestas, que relatam presenciar o
início de uma combustão instantânea, no qual as chamas se concentram e parecem
se locomover arrastando pelo chão. Tal fenômeno obviamente começou a ser
associado à aparição do boitatá.
Embora tais características sejam
compatíveis com alguns aspectos do boitatá, a ciência pode também justificar
tal ocorrência. Trata-se do fenômeno eletrostático chamado fogo-fátuo, do latim
ignis fatuus, também conhecido no
interior do Brasil como fogo tolo, fogo corredor ou João-galafoice. Geralmente
esse evento ocorre em locais com extensa degradação de matéria orgânica, como
pântanos e brejos. A decomposição desses compostos produz moléculas como fosfina
(PH3), difosfano (P2H4) e metano (CH4).
A oxidação desses compostos, seguida de exposição ao oxigênio atmosférico, é
capaz de causar rápidas reações de oxidações, dando origem às chamas (quando na
atmosfera há uma concentração de metano de 28%, este se inflama espontaneamente,
sem necessidade de uma faísca). Além disso, em locais com muita degradação de
animais mortos, há o acúmulo de fósforo branco (P4) originado das
ossadas. Quando um raio ou faísca eventualmente entra em contato com essa
substância, também há o desencadeamento de surgimento de chamas.
Tal fenômeno também é utilizado
para justificar a “manifestação” de outras lendas ao redor do mundo, como os
Yakãundys (América do Sul), lutinos (frança), luz-louca (Alemanha) fogo de
santelmo, Jack da lanterna (Inglaterra), Moine des Marais (França),
alminhas/alma dos meninos pagãos (Portugal), farol dos Andes e luz mala
(Argentina e Uruguai), víbora-de-fuego (Argentina), Shinen-Gaki (Japão) e
bifrons (antigo império romano).
Cabe lembrar que uma coisa não
invalida a outra, ou seja, embora as reações de combustão de matéria orgânica
degradada existam, por que o boitatá também não poderia existir?
Fenômeno do fogo-fátuo |
✞ Jean de la foice é o boitatá? ✞
Em muitos textos e livros, a
lenda de Jean de la foice (Jean Delafosse ou João Galafuz), originada em
estados do nordeste (Pernambuco, Sergipe e Alagoas), é associada erroneamente
como outra denominação regional do boitatá. Entretanto, as duas superstições
são totalmente diferentes e independentes. A lenda de Jean de la foice retrata
a estória de um garoto chamado João Galafuz, que por ter morrido pagão se
transformou em um duende que assombra os mares nordestinos. Testemunhas relatam
que sua aparência é como a de um facho luminoso e multicor, que prenuncia a
chegada de tempestades e ocorrência de naufrágios.
Mais uma vez o fenômeno do
fogo-fátuo pode fundamentar uma explicação racional para tal acontecimento.
Devido a esse ponto em comum, é bastante difundida a errada ideia de que Jean
de la foice é uma sinonímia para a lenda do boitatá.
✞ Possível erro de tradução do tupi-guarani? ✞
Alguns indícios sugerem que,
provavelmente, a associação da cobra à lenda possa ter sido algo acidental.
Para ser mais preciso, um erro de tradução de morfemas da língua tupi-guarani.
Padre José Anchieta, ao citar a lenda pela primeira vez usa o termo “baetatá”
após ter acesso a essa informação junto aos povos indígenas. O fonema “bae” no
idioma tupi-guarani pode ser originado dos morfemas “mbói” (que significa
“cobra”), ou ainda mais parecido, “mbai” (que simbolizava “coisa”). Diante
dessas evidências, não podemos descartar a possibilidade dos indígenas estarem
se referindo a “coisa de fogo” ao invés de “cobra de fogo”.
Associado a essa possível falha
na tradução, na língua portuguesa ainda existe a palavra “boi”, que todos nós
sabemos que se refere ao mamífero ungulado de dois dígitos em cada membro (ou
de maneira mais informal, o marido da vaca!). Isso pode ter influenciado alguns
escritores a descrever da criatura como um bovino, conforme elucidado por
Crispim Mira no livro “Terra Catarinense” e Lindolfo Xavier em “O Folklore no
Brasil”.
✞ Boitatá nas mídias ✞
Em 2007 o escritor Manuel Filho
lançou a obra “Quem tem medo do Boitatá?”, na qual o personagem Sandrinho perde
a visão ao se deparar com a criatura. Já na obra “O casamento do Boitatá com a
Mula-sem-cabeça”, José Santos aborda a união de vários seres do folclore
brasileiro. A lenda também é contada na forma de cordel em “A lenda do Batatão”,
de Marco Haurélio. Em “Uaná, um curumim entre muitas lendas” de Alexandra
Pericão, a lenda é abordada de uma forma mais contemporânea.
✞ Referências
✞
Wikipedia – João Galafuz à https://bit.ly/2T9DHsV
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