terça-feira, 13 de agosto de 2019

BOITATÁ – A serpente que sobreviveu ao dilúvio bíblico!


Gustavo Valente


Origem e características

O boitatá também é conhecido pelos nomes de mboitatá, baitatá ou batata (região Sul), biatatá (Bahia), bitatá, bata (São Paulo e Minas Gerais) e batatão (região Norte e Nordeste). Trata-se de um personagem do folclore brasileiro, descrito como uma grande serpente de fogo que protege as matas e campinas contra pessoas intencionadas a queimá-las.  

Tal lenda tem origem indígena, assim como seu nome. Do tupi-guarani, boitatá vem de cobra (boi) e fogo (tata). O folclorista brasileiro Couto Magalhães destacou em sua obra “O Selvagem” (1876) que “como a palavra o diz, boitatá é cobra-de-fogo”. O primeiro registro histórico acerca da lenda encontra-se numa carta do padre jesuíta José de Anchieta, escrita em 31 de maio de 1560, no qual ele cita algumas lendas relatadas pelos indígenas: "Há também outros (fantasmas), máxime nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios, e são chamados ‘baetatá’, que quer dizer cousa de fogo, o que é o mesmo como se se dissesse o que é todo de fogo. Não se vê outra cousa senão um facho cintilante correndo para ali; acomete rapidamente os índios e mata-os, como os curupiras; o que seja isto, ainda não se sabe com certeza”.


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Na obra “Lendas do Sul” de 1913, escrita por João Simões Lopes Neto, é descrita algumas características físicas dessa criatura. O boitatá se apresenta como uma grande serpente que emana fogo, concentrado principalmente em sua cabeça. Em meio a essa chama, é possível ver diversos olhos. Segundo a lenda, o boitatá era uma boiguaçu (sucuri) que permaneceu adormecendo em um tronco dentro de uma caverna durante o grande dilúvio de 40 dias retratado no Antigo Testamento da Bíblia (o mesmo dilúvio da conhecida estória da Arca de Noé!). A enchente decorrente da chuva foi fatal para a maioria todos os animais da floresta, exceto essa sucuri. Quando despertou, estava faminta e resolveu caçar. Ao ver os animais mortos, a sucuri decidiu comer apenas seus olhos, já que eles permaneciam brilhando devido aos resquícios da última vez que o sol raiou. Na medida em que os predava, a cobra começou a ficar paradoxalmente transparente e intensamente luminosa, até se tornar uma cobra de fogo com diversos olhos. Como forma de pagar pelo pecado da gula, ele se tornou uma alma penada que vaga pelas florestas, protegendo-as contra a devastação e queimadas.


Da mesma forma, outras vertentes históricas da lenda também atribui a origem do boitatá ao grande dilúvio bíblico. Entretanto, tais relatos apontam que outros animais também foram capazes de sobreviverem à tempestade. A sucuri ao despertar deu seu sono tinha a vantagem de enxergar muito bem na escuridão, fato que conferiu uma facilidade em predar os demais animais sobreviventes. Com a grande oferta de alimento, ela decidiu comer apenas as partes que julgava mais apetitosas: os olhos. De tanto comê-los, a sucuri foi adquirindo a luminosidade de tais estruturas. Quando essa serpente morreu, sua alma foi amaldiçoada, pelo pecado da gula, a vagar pelas matas, como uma serpente toda iluminada.

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Existe também uma variação da lenda em Santa Catarina, relatada no livro “Terra Catarinense” por Crispim Mira, em 1920. Nessa, o boitatá não é retratado como uma cobra, mas sim como um touro feroz que disparava chamas pela boca. Além disso, ele tem "pata como a dos gigantes” e “um enorme olho bem no meio da testa”, como um ciclope. Essa criatura já foi visualizada nas praias de Santa Catarina e até mesmo voando por cima de árvores em matas desse estado. Muitos acreditam que esse boi seja a alma de indivíduos que em vida tinham relações incestuosas com suas comadres. Para afugentá-lo ou captura-lo, diz-se que é necessário amarrá-lo com cordas de sino de igreja.

No estado do Paraná temos ainda uma quarta versão da lenda: nessa, o boitatá também é fruto da relação entre compadre e comadre, e sua forma física não é de uma serpente ou bovino, mas sim de esferas de chamas. Tais esferas normalmente não fazem mal para os que se deparam com elas, e estão condenadas a vagarem eternamente nas noites, entre os galhos das árvores de florestas. Por causa dessa outra vertente de origem do boitatá, em alguns lugares ele também é conhecido como “alma dos compadres e das comadres”.

A lenda do boitatá também está presente em algumas regiões do Paraguai e Argentina. Apesar de ter uma origem diferente, a lenda aborda aspectos já retratados nos boitatás brasileiros, como a figura da serpente de fogo e a relação incestuosa entre compadre e comadre. Nessa lenda os indivíduos que cometeram tal transgressão, ao adormecer se transformam em víbora (ou pássaro) com a cabeça em chamas. Em seguida, essas serpentes procuraram uma à outra até se encontrarem e se devorarem mutuamente.

Podemos perceber que de acordo com a região, o boitatá pode ter diferentes origens. Tais relatos ora apresentam muito pontos em comuns, mas ora apresentam muitos aspectos conflitantes. Esse pode ser o resultado de uma história ser passada de geração a geração a partir de relatos orais, sem que um registro escrito definitivo fosse feito. Dessa forma, as diferenças culturais entre cada região podem determinar mudanças consideráveis na estória, sendo mal percebidas uma vez que ocorreram de forma gradativa ao longo do tempo.


Poderes

Geralmente o boitatá habita as águas de rios ou lagoas. A maior parte dos avistamento dessas criaturas ocorre na margem de algum leito d’água. De acordo com a lenda, o fogo emanado por ele é mágico, por isso não provoca incêndios nas florestas e nem se apaga quando se submerge na água. Mas quando alguém entra em sua mata com más intenções, principalmente visando iniciar uma queimada, o boitatá entra em ação. Uma das estratégias utilizadas por essa criatura é a capacidade de se transformar em um tronco em brasas, denominado “méuan”. Quando o malfeitor eventualmente encosta nesse tronco, ele imediatamente entra em combustão, queimando-o em contrapartida. Acredita-se também que quando a pessoa direciona seu olhar diretamente para algum dos vários olhos do boitatá, esta imediatamente se torna cega e louca. Sugere-se ainda que o melhor a ser feito ao se deparar com um boitatá é permanecer parado, com a respiração presa e de olhos bem fechados até ele ir embora. Tentar fugir dele pode não ser uma boa ideia, uma vez tal atitude pode ser o gatilho para que o boitatá inicie um ataque.

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Relatos de testemunhas


Existe um levantamento elaborado por Vanderci de Andrade Aguilera, intitulado como “O baetatá existe realmente?”, no qual um questionário foi aplicado aos moradores de regiões rurais do estado do Paraná, acerca de suas experiências com o boitatá. Dos 130 participantes, 27 (21%) afirmaram ter visto o boitatá pessoalmente, enquanto 25 indivíduos (19%) relataram alguma narrativa ouvida dos ancestrais ou vivenciada por eles. Por outro lado, 34 pessoas (26%) afirmaram não saber do que se tratava o boitatá, embora já tivessem ouvido algo a respeito disso, enquanto 44 pessoas (34%) nunca tinham ouvido nada a relacionado a essa lenda.

O estudo de Aguilera também é rico na descrição de alguns relatos de testemunhas oculares do boitatá. Abaixo coloco algumas dessas narrações. Sugiro que acessem o texto na íntegra para terem acesso aos 16 relatos sobre a criatura colhidos nesse levantamento (o link do artigo “O baetatá existe realmente?” se encontra ao final deste texto).

Resultado de imagem para boitataRelato nº 1: “Ah! meu pai que falava do baitatá. Meu pai falava que um dia ele foi caçar no rio, daí ele chegou lá no rio e diz que começou aquele barulho e aquele fogo. Daí ele disse assim que era o baitatá, ele disse que o baitatá era parte do coisa ruim, né, e estava assustando ele. Daí ele pegou e foi e voltou pra trás por que já era três vezes que ele tinha ido pra lá, e três vezes que ele passava por ali e o baitatá estava atentando ele e era o coisa ruim”.

Relato nº 2: “Ah! Sim, nós vimos uma vez, nós estávamos sentados na área de casa quando chegando daí de noitezinha tinha um fogo na roça do vizinho e desceu aquela fita de fogo naquele um e daí daquele extraviou tudo, de repente subiu um com o outro pra cima daí desceu e se pecharam daí ficaram em dois, daí um ia sozinho, de repente os dois subiram em cima duma serra e sumiram, nós vimos uma única vez, mas aí contaram que era o tal do baitatá”

Relato nº 3: “Volta e meia aí num lugar eu noto aí que dava (o baitatá), eles falavam que tinham visto o baitatá e coisa e eu ficava ‘escuitano’ assim, mas eu mesmo enxergar nunca enxerguei”

Relato nº 12: “Já (vi). Fica nas árvores assim. Diz que se não mexer com ele, diz que ele não mexe com a gente, só quem assobia, daí ele...daí ele vem, e queima. [E a senhora já viu muito?] Já, eu vi bastante já. [Onde?] Ih, assim nos matos, sempre dá, a gente enxerga de longe aquela tocha de fogo, (...) Se assobiar eles vêm, que vêm loucos na gente”



Criador de boitatás?

Visando fomentar a importância cultural da lenda ou apenas fazer uma brincadeira, na internet há o relato de Tiago Scaramella que afirma criar tais criaturas em São José do Timbózinho - SC. Segundo o próprio, é possível pegar o filhote em mãos, já que ele não é agressivo e nem muito quente. Tal criação exige um amplo espaço físico, uma vez que eles tendem a se afastar quando algum desconhecido se aproxima. No inverno, os boitatás tendem a buscar proteção contra um frio embaixo de folhas de fumo. Scaramella afirmou também que certa vez um amigo levou um casal de boitatá para o Acre, visando afugentar o mapinguari (outra criatura do folclore brasileiro que vive na floresta amazônica) de sua propriedade.


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Explicações racionais – o fogo-fátuo

Existem muitas testemunhas, como indígenas e aventureiros que adentram florestas, que relatam presenciar o início de uma combustão instantânea, no qual as chamas se concentram e parecem se locomover arrastando pelo chão. Tal fenômeno obviamente começou a ser associado à aparição do boitatá.

Embora tais características sejam compatíveis com alguns aspectos do boitatá, a ciência pode também justificar tal ocorrência. Trata-se do fenômeno eletrostático chamado fogo-fátuo, do latim ignis fatuus, também conhecido no interior do Brasil como fogo tolo, fogo corredor ou João-galafoice. Geralmente esse evento ocorre em locais com extensa degradação de matéria orgânica, como pântanos e brejos. A decomposição desses compostos produz moléculas como fosfina (PH3), difosfano (P2H4) e metano (CH4). A oxidação desses compostos, seguida de exposição ao oxigênio atmosférico, é capaz de causar rápidas reações de oxidações, dando origem às chamas (quando na atmosfera há uma concentração de metano de 28%, este se inflama espontaneamente, sem necessidade de uma faísca). Além disso, em locais com muita degradação de animais mortos, há o acúmulo de fósforo branco (P4) originado das ossadas. Quando um raio ou faísca eventualmente entra em contato com essa substância, também há o desencadeamento de surgimento de chamas.

Tal fenômeno também é utilizado para justificar a “manifestação” de outras lendas ao redor do mundo, como os Yakãundys (América do Sul), lutinos (frança), luz-louca (Alemanha) fogo de santelmo, Jack da lanterna (Inglaterra), Moine des Marais (França), alminhas/alma dos meninos pagãos (Portugal), farol dos Andes e luz mala (Argentina e Uruguai), víbora-de-fuego (Argentina), Shinen-Gaki (Japão) e bifrons (antigo império romano).

Cabe lembrar que uma coisa não invalida a outra, ou seja, embora as reações de combustão de matéria orgânica degradada existam, por que o boitatá também não poderia existir?

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Fenômeno do fogo-fátuo


Jean de la foice é o boitatá?

Em muitos textos e livros, a lenda de Jean de la foice (Jean Delafosse ou João Galafuz), originada em estados do nordeste (Pernambuco, Sergipe e Alagoas), é associada erroneamente como outra denominação regional do boitatá. Entretanto, as duas superstições são totalmente diferentes e independentes. A lenda de Jean de la foice retrata a estória de um garoto chamado João Galafuz, que por ter morrido pagão se transformou em um duende que assombra os mares nordestinos. Testemunhas relatam que sua aparência é como a de um facho luminoso e multicor, que prenuncia a chegada de tempestades e ocorrência de naufrágios.

Mais uma vez o fenômeno do fogo-fátuo pode fundamentar uma explicação racional para tal acontecimento. Devido a esse ponto em comum, é bastante difundida a errada ideia de que Jean de la foice é uma sinonímia para a lenda do boitatá. 



Possível erro de tradução do tupi-guarani?

Alguns indícios sugerem que, provavelmente, a associação da cobra à lenda possa ter sido algo acidental. Para ser mais preciso, um erro de tradução de morfemas da língua tupi-guarani. Padre José Anchieta, ao citar a lenda pela primeira vez usa o termo “baetatá” após ter acesso a essa informação junto aos povos indígenas. O fonema “bae” no idioma tupi-guarani pode ser originado dos morfemas “mbói” (que significa “cobra”), ou ainda mais parecido, “mbai” (que simbolizava “coisa”). Diante dessas evidências, não podemos descartar a possibilidade dos indígenas estarem se referindo a “coisa de fogo” ao invés de “cobra de fogo”.

Associado a essa possível falha na tradução, na língua portuguesa ainda existe a palavra “boi”, que todos nós sabemos que se refere ao mamífero ungulado de dois dígitos em cada membro (ou de maneira mais informal, o marido da vaca!). Isso pode ter influenciado alguns escritores a descrever da criatura como um bovino, conforme elucidado por Crispim Mira no livro “Terra Catarinense” e Lindolfo Xavier em “O Folklore no Brasil”. 

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Boitatá nas mídias

Em 2007 o escritor Manuel Filho lançou a obra “Quem tem medo do Boitatá?”, na qual o personagem Sandrinho perde a visão ao se deparar com a criatura. Já na obra “O casamento do Boitatá com a Mula-sem-cabeça”, José Santos aborda a união de vários seres do folclore brasileiro. A lenda também é contada na forma de cordel em “A lenda do Batatão”, de Marco Haurélio. Em “Uaná, um curumim entre muitas lendas” de Alexandra Pericão, a lenda é abordada de uma forma mais contemporânea.


Referências

Comunicação UNIUV à https://bit.ly/2Ki6ebR
Geografia dos Mitos Brasileiros à https://bit.ly/2SZ84Cc
Hipercultura à https://bit.ly/2LSTEmp
Lendas do Sul à https://bit.ly/318Mf6i
O Baetatá existe realmente? à https://bit.ly/2Ymfg1k
Sua Pesquisa à https://bit.ly/2LSDh9k
Toda matéria à https://bit.ly/2NCIjTQ
Wikipedia - Boitatá à https://bit.ly/2SP5Ipm
Wikipedia – João Galafuz à https://bit.ly/2T9DHsV

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